terça-feira, 9 de outubro de 2012

Entre a ciência e a arte

 

Nos últimos anos, o grande processo da tecnologia tem provocado várias perguntas.  A mais inquietante delas é: “será que a memória de um computador carregada com todas as informações contidas nos tratados de Medicina não seria capaz de substituir, até com vantagens, o trabalho que os médicos fazem com apoio no exame clínico?”. Colocada nestes termos, a indagação já estabelece uma disputa entre o método clínico e a tecnologia médica, como se houvesse antagonismo entre ambos. Por isso, antes de mais nada, é preciso recusar este confronto. Ele é falso. Não há conflito entre a medicina clínica e a tecnológica. São coisas diferentes. Uma pode completar a outra, mas nenhuma pode substituir a outra. Cada uma tem seu lugar, mas, a meu ver, o exame clínico tem um papel especial em três pontos cruciais da prática médica: 1) para formular hipóteses diagnósticas; 2) para estabelecer uma boa relação médico-paciente e 3) para a tomada de decisões. O médico que levanta hipóteses diagnósticas consistentes é o que escolhe com mais acerto os exames complementares. Ele sabe o que rende mais para cada caso, otimizando a relação custo-benefício, além de interpretar melhor os valores dos exames laboratoriais, as imagens radiológicas e os gráficos construídos pelos aparelhos. Quem faz bons exames clínicos aguça cada vez mais seu espírito crítico e não se esquece de que os laudos de exames complementares são apenas resultados de exame e nunca representam uma avaliação global do paciente. Na verdade, correlacionar com precisão os dados clínicos com os exames complementares pode ser considerada a versão moderna do “olho clínico”, segredo do sucesso dos bons médicos – cuja essência é a capacidade de valorizar detalhes sem perder a visão do conjunto. Bastaria isso para garantir um lugar de destaque para o exame clínico na medicina moderna – ou de qualquer tempo – mas, no presente momento, precisamos nos empenhar na (re)valorização da relação médico-paciente porque, ao menosprezar seu lado humano, a medicina perdeu o que ela tem de melhor. Essa relação que tanto insisto em pôr em questão nasce e se desenvolve durante o exame clínico, e sua qualidade depende do tempo e da atenção que dedicamos à anamnese - trabalho que nenhum aparelho consegue realizar com a mesma eficiência que nos dá a entrevista. Aliás, os pacientes têm notado que, quando se interpõe entre eles e o médico uma máquina, o médico se deslumbra (ou se perde) com ela e se esquece deles. De certo modo, transfere para a máquina os cuidados e carinho que antes eram dedicados ao doente. Sem dúvida, a qualidade do trabalho médico depende de muitos fatores, mas a relação médico-paciente continua sendo um ponto fundamental. Decisão diagnóstica não é o resultado de um ou de alguns exames complementares, por mais sofisticados que seja, tampouco o simples somatório dos gráficos, imagens ou valores de substâncias orgânicas. É um processo muito mais complexo porque utiliza todos esses elementos mas não se resume a eles. Numa decisão diagnóstica, bem como no planejamento terapêutico, precisamos levar em conta outros fatores, nem sempre aparentes ou quantificáveis, relacionados ao paciente como um todo, principalmente se soubermos colocar acima de tudo sua condição de pessoa humana.  Aí, também, o exame clínico continua insuperável. Somente ele tem a flexibilidade e abrangência suficientes para encontrar as chaves que personalizam cada diagnóstico realizado. A doença pode ser a mesma, mas os doentes nunca serão exatamente iguais.  Sempre existem particularidades advindas das características antropológicas, étnicas, culturais, psicológicas, sócio-econômicas e até ambientais. Como programar uma máquina para tão diversas funcionalidades? Estas considerações nos permitem dizer que o grande desafio da medicina moderna é conciliar o método clínico aos avanços tecnológicos. Quem compreender este desafio realmente saberá o significado da expressão que vem atravessando os séculos sem perder sua força: ‘‘a medicina é uma ciência e uma arte!”.

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